Sem Bento na história


A primeira vez que fui a Trancoso, foi dois meses depois que me casei. Fomos de carro do Rio para Arraial D'ajuda passar uma semana. Naquele tempo, em 1988, tinha até um lugar chamado de Lagoa Azul. Uma pequena lagoa próxima ao mar, de argila cor de rosa e muito macia. O pessoal entrava e tomava banho completo, depois deixava secar e ficava todo mundo rosa cor de Caladryl.

Era mesmo uma delícia, previsível que não durasse muito a tal lagoa... Arraial naquele tempo não tinha asfalto nem paralelepípedo, mas um monte de pousadinhas de frente para o mar. Um dia fomos conhecer Trancoso, muita gente arriscava ir pela praia, uns vinte quilômetros mais ou menos, mas fomos de ônibus.

Este sacudia um bocado na estrada de terra estreita e poeirenta. Atravessamos umas duas pontezinhas onde só dava mesmo a largura certa do veículo. Numa delas, que ao que parece não dava conta do peso do ônibus cheio, desceu todo mundo, e depois da ponte subiu todo mundo de volta.

Depois de um tempão chegamos. O Quadrado era o pasto de vaquinhas. As casinhas coloridas eram uma só paz. Não tinha pousada ou restaurante por ali, se tinha não deu nem para perceber. Atrás da igrejinha aquele marzão sem fim, rodeado pelo manguezal e o rio.

Naquele dia não entrei no rio, andamos para o outro lado, a praia dos Coqueiros, que por aqueles dias era praia de nudismo. Vimos muito pouca gente, afinal os turistas ainda não tinham redescoberto a região. Tinha sim um grande pier de madeira, ainda tenho uma foto lá. Mas quem é que atracava por aquelas bandas? Quem teria construído aquela maravilha perdida nas águas do sul da Bahia?

Voltamos, e cansados tentamos sem sucesso cochilar no ônibus quente, empoeirado e sem conforto algum.

Já com as crianças pequenas passamos uma semana em Porto Seguro, cada dia em uma praia diferente, mas nos dia em que íamos a Trancoso choveu, e desistimos de voltar ao paraíso... Naquela época compramos um terreno em um loteamento de Porto, e esperávamos um dia construir lá. Cheguei até a fazer uma planta e falamos com um engenheiro da região.

Algum tempo depois eu e meu marido fomos passar um fim de semana em Trancoso, desta vez o Quadrado já era chique, as vaquinhas tinham ido embora e chegaram as lojas da Richard's e Manga Rosa... Num fim de tarde passeamos na praia dos Nativos. Lembro-me bem de sentar onde as águas do riozinho encontravam o mar... Apaixonei... Poderia ficar ali para sempre, sentindo-me abençoada pelas águas doces e salgadas, e por todas as mães d'água.

Vendo aquela paisagem verdejante, de mangue, coqueiral, céu azul, rio e mar, este cintilando com a luz do dia, dava para entender por que tanta gente largava tudo e ficava por lá. Há uma magia, um não sei o quê, que enfeitiça, que faz o tempo correr mais devagar. Chamo o lugar de a "terra dos cachorros livres felizes", há um monte deles, e sempre que andamos pela praia um amigo canino nos faz companhia da longa caminhada (quando não temos a companhia do Bento, é claro).

Depois, de outra vez, choveu torrencialmente todos os dias. Sem ter como ir a praia ou passear, fomos visitar um stand de vendas de um loteamento, compramos um novo terreno em Trancoso, e vendemos o que tínhamos em Porto.

Fincamos o pé no sonho de ter uma casa perto da praia. Doze anos depois, de muitas idas e vindas, minha filha quis casar em Trancoso. E nós que quase não gostamos do lugar aceitamos. A casa não saiu, mas o casório sim, e foi lindo! Com direito a cachorro e tudo! Bento faz parte da família, ele adora a Bahia, e correr na areia, jogar-se no rio e no mar de Trancoso!

Resolvi fazer uma pesquisa e compreender melhor tudo aquilo, que é Bahia (um outro país!), que é mágico. Li um livro que integra a tese de doutorado  de Fernanda Carneiro, intitulado "Nativos e Biribandos - Memórias de Trancoso". Vi também o filme "Viajantes ao Quadrado", da mesma autora.

Então dá para entender muito daquele lugar, e viajar no tempo, bem longe, quando aquele altiplano frente ao mar foi aldeia indígena, Itapitanga. Então as festas eram dos feiticeiros, dos pajés brasileiros, de certo que a magia deste lugar tem a ver com eles. Depois vieram os jesuítas e sua missão, e a igreja de São João.

Foi vila portuguesa, um alemão se aventurou por aqui. Depois foi caindo no esquecimento, difícil de chegar! Até que os hippies descobriram Trancoso nos anos 70. Saíram de suas cidades, deixaram suas famílias ricas, e aportaram por lá, vindo pela praia. Imaginem, sem luz, sem água (só na lata subindo a ladeira velha, uma pirambeira horrorosa). Banheiro, no mato, banho, no rio. Médico nem pensar, criança nascia com parteira, remédio era chá e erva. Cama era jirau de madeira com esteira de palha.

Saíram da opressão do regime militar, e encontraram a liberdade. Deixaram lares truncados e encontraram uma comunidade solidária, onde todos eram uma só família. Dinheiro? Nem havia. Trocava-se, farinha, café, peixe, fruta... Uma pobreza quase absoluta, mas uma alegria igualmente imensa, sempre disposta a festejar os santos, a cair no samba e na cachaça...

Nem tinham dinheiro, nem conheciam seu valor. Daí que terra também não tinha valor, trocava-se por rádio de pilha, moto e fusca velho, geladeira a querosene, qualquer coisa. E gente foi chegando e se entusiasmando. Nos anos 80 veio a estrada velha feita no muque dos homens, as pontes de madeira, então a água, a luz, e mais povo chegando!

E não parou mais de chegar. E onde é que vai dar? Quem vai saber? Aquela terra andou muito tempo parada no tempo, guarda a história e origens do Brasil, de seu povo mestiço, índio, negro e branco. Como esconder, não compartilhar sua beleza? Trancoso caiu na boca do mundo... Que os santos e os pajés orem e cuidem deste canto!

Se você aparecer por lá, cuide de não tomar banho no rio, pode se apaixonar irremediavelmente por este lugar...

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